O Futuro da Educação perante as Novas Tecnologias

Por A. Dias de Figueiredo
Departamento de Engenharia Informática
Universidade de Coimbra
Resposta, enviada por correio electrónico, às perguntas da jornalista Paula Banza, da revista Forum Estudante. Só parcialmente reproduzida na revista.

"O nosso primeiro objectivo é dar a conhecer o que será o futuro da educação. Por isso, Gostaríamos de saber a sua opinião relativamente à adaptação do ensino às novas tecnologias. Será que ela é mesmo indispensável?"

A educação tem, imperiosamente, que se adaptar às necessidades das sociedades que serve. O grande desafio actual é o de se adaptar às grandes mutações sociais, culturais e económicas criadas pela eclosão das novas tecnologias. Nesse sentido, a adaptação é indispensável, e urgente, mas não se trata de adaptar a educação às tecnologias. Como dizia Heidegger: "a essência da tecnologia tem pouco que ver com a tecnologia"! Os maiores desafios não são de natureza tecnológica, mas, insisto, de natureza social, cultural e económica.

"Que evolução prevê para a educação que temos hoje por tradicional?"

Se se mantiver como se encontra, prevejo que se vá divorciando cada vez mais das necessidades reais dos seus destinatários. Exprimi esta opinião na contibuição que me foi pedida para o Livro Branco da Educação no Século XXI, que a Comissão Europeia está a elaborar. A escolaridade, enquanto sistema dirigido às massas, praticamente não existia antes do século XIX. Foi criada para corresponder às necessidades de massificação da educação criadas pela Sociedade Industrial, e para manter as crianças protegidas das realidades do sistema económico - as indústrias - que as exploravam vilmente como mão de obra barata. Na alvorada do século XXI, nenhum destes pressupostos se mantém. À medida que as economias transitam de lógicas industriais para lógicas do saber, as necessidades passam a centrar-se na obtenção de "trabalhadores do saber". Por outro lado, já não é necessário isolar as crianças da sociedade, em escolas antisépticas. Pelo contrário: pretende-se que a construção do seu saber possa ser uma actividade social plenamente integrada.

Por outro lado, a aprendizagem adquirida nas escolas representa uma parcela cada vez menor da aprendizagem que se adquire no dia-a-dia. Há já muitos anos que alguns pais colocam os seus filhos, fora das horas de escolaridade obrigatória, em estabelecimentos paralelos às escolas oficiais, onde garantem (e, em muitos casos, certificam) a sua competência em línguas, música, dança, electrónica, informática, ou desportos. No entanto, a eclosão das tecnologias multimedia, suportadas por poderosas indústrias culturais, e as potencialidades de interacção através de redes de dados, perfiguram um cenário explosivo de oportunidades de auto-educação e de educação à distância, não só na idade escolar, mas ao longo de toda a vida.

Neste contexto, cada vez mais jovens e adultos exigem variedade de canais de aprendizagem, num sistema de elevada escolha. Exigem também maior actividade e interactividade, mobilidade, convertibilidade, conectividade, ubiquidade, e globalização. As escolas tradicionais estão mal equipadas para fazer face a este desafio. A mudança, da massificação das escolas para a individualização da escolha livre, nomeadamente através das redes de dados, tenderá a retirar parte da importância às escolas e a colocá-la na casa de cada um.

Este cenário poderia fazer crer que partilho o cepticismo de alguns autores radicais quanto ao futuro das escolas. Passa-se o contrário: penso que a escola nunca foi tão necessária! De facto, penso que a variedade explosiva da escolha e a agressividade crescente da oferta estão a mergulhar os cidadãos em geral, e as crianças e jovens em particular, na mais profunda das dissonâncias e ansiedades. Por outro lado, como dizia Naisbitt na sua identificação das megatendências actuais, a frieza das altas tecnologias impõe uma contrapartida indispensável de calor humano: quanto mais tecnológica é uma sociedade, mais necessita de compensações ao nível dos valores humanos e da afectividade. É aqui que se situa, a meu ver, a função chave de um escola reinventada: dar estrutura a um mundo de diversidade, fornecer os contextos e saberes de base para uma autonomia de sucesso nesse mundo, e fornecer as respostas humanas compensatórias de que a escola dos nossos dias se está a distanciar tão perigosamente.

"Será que as novas tecnologias vão ser uma ferramenta, a par de outras, para ensinar e aprender?"

Sem dúvida! E serão ferramentas com importância crescente. Mas importa esclarecer aqui um aspecto em que a minha visão diverge da habitual. A opinião comum é que essas ferramentas serão usadas principalmente nas escolas. A minha visão é que serão usadas maioritariamente em casa e em centros de recursos publicamente disponíveis (centros estes que evoluirão a partir das bibliotecas públicas). Esta minha opinião baseia-se em três razões principais. Primeiro, as escolas não têm condições financeiras para manterem um grande parque de equipamento que se torna obsoleto todos os dois ou três anos, nem para adquirirem um número significativo de licenças de títulos didácticos, sempre em renovação. Segundo, o ritmo de evolução das tecnologias torna incomportável em termos financeiros, e insustentável em termos profissionais, uma formação e reciclagem permanente dos professores "para as tecnologias". Terceiro, as empresas produtoras de suportes e serviços didácticos só conseguem encontrar viabilidade económica para uma prestação de qualidade se se dirigirem ao mercado alargado do grande consumo. Já actualmente, o mercado doméstico de equipamentos e produtos de software é incomparavelmente mais visível do que o mercado das escolas.

Não quero dizer com isto que as escolas não explorarão as novas tecnologias. Nada disso! O que pretendo dizer é que o farão de forma muito mais moderada do que seria de esperar, em torno de centros de recursos - esses sim, bem equipados, com um conjunto variado de títulos didácticos, e com uma indispensável ligação às redes electrónicas. Em contrapartida, duvido em absoluto da viabilidade (e justificação) dos cenários, ainda muito defendidos, de escolas com um terminal para cada aluno e com redes internas por todo o lado.

Feito este esclarecimento, devo insistir em que o papel que prevejo para as novas tecnologias nas escolas, embora confinado aos tais centros de recursos, será de importância crucial. Para que se mantenha integrada na realidade que a circunda, a escola tem que estar familiarizada com o recurso a ferramentas informáticas, e tem que saber integrar essa familiaridade na acção educativa normal. Tem, por outro lado, que saber marcar a sua presença no ciberespaço, facultando aos alunos uma familiarização no acesso, não só a vastos repositórios de dados, mas também às multiplas oportunidades de interacção social. A grande importância pedagógica do acesso a ciberespeaços é que aí os alunos podem aprender FAZENDO coisas, em vez de aprenderem OUVINDO dizer como é que as coisas devem ser feitas. Podem, assim, colaborar com outras pessoas, trocar todos os tipos de ficheiros, e, acima de tudo, aprender a construir o seu saber num processo cumulativo de ajuda mútua e de percepção partilhada de problemas e necessidades.

"Qual vai ser o papel do professor? Como é que vai ser a formação do professor?"

O professor será o agente chave da escola reinventada. À medida que a aquisição de saber se torna mais e mais um processo de exposição a uma multiplicidade de oportunidades de aprendizagem, essa exposição múltipla torna-se um motivo de crescente sobrecarga cognitiva, se não de total perda de referências. Uma das principais funções da cultura é a de operar como filtro altamente selectivo na nossa estruturação de visões do mundo e na nossa protecção contra sobrecargas cognitivas. A solução para superar estas sobrecargas situa-se ao nível dos processos de contextualização oferecidos pela cultura.

A compartimentação do saber torna possível compreender uma coisa de cada vez, mas simultaneamente nega contextos. Ora, num oceano imenso de informação, aquilo a que prestamos atenção é aos contextos, e, em larga medida, são os contextos que oferecem estrutura. A grande preocupação das escolas do presente é compartimentar o saber, em vez de oferecer contextos para compreendermos um mundo de diversidade, em que vivemos cada vez mais sequiosos de saber e mais afogados em informação. A reconciliação entre conteúdos e contextos exige que o desenvolvimento curricular se transforme num projecto mobilizador chave, tanto para os professores como para as autoridades educacionais. O grande desafio já não é o de preparar os professores para usarem as tecnologias da informação nas suas disciplinas, mas o de manter uma reflexão interdisciplinar, e permanentemente renovada, acerca dos modos como enfrentar as oportunidades e as ameaças de uma sociedade da informação.

A formação de professores será forçosamente influenciada por esta perspectiva. Não poderá continuar a ser um debitar de palavras e de práticas para audiências mais ou menos passivas. Terá que transformar-se em trabalho de projecto que mobilize integralmente o vigor e criatividade dos professores. Deverá decorrer no âmbito de um grande projecto mobilizador centrado no desenvolvimento curricular, que saiba criar uma adesão alargada por parte do corpo docente e da própria sociedade civil.

"De que forma vão entrar aqui a Internet e outras redes electrónicas, ou o software educativo?"

Se recordarmos que as pessoas aprendem melhor quando fazem, e se lembrarmos que a aprendizagem corresponde à criação efectiva de saber através de um esforço pessoal - e, em muitos casos, através de intensa interacção social - podemos compreender a importância de que se podem revestir as redes de dados no processo de aprendizagem. Ao oferecerem formas variadas de interacção social, as redes de dados tornam possível a animação de discursos de conjecturas e refutações, tão importantes para a aquisição genuína de saber. Em muitos casos, podem trazer para a escola a dimensão de interacção multicultural que lhe falta, nomeadamente na ligação entre a realidade académica e o mundo do trabalho e na troca de experiência entre habitantes de diferentes regiões e países. Por outro lado, ao permitirem aos jovens explorar - em vários contextos de aprendizagem, bem como nos seus tempos livres - as múltiplas facetas do acesso e navegação em redes de dados, oferecem uma excelente oportunidade para os familiarizar com a actual transferência de muitas actividades profissionais para o ciberespaço.

Mas os beneficios das redes de dados não serão só para os alunos. Os professores também poderão retirar vantagens incalculáveis da interacção, através das redes, com os seus pares e com o mundo do trabalho. Podem partilhar e construir colectivamente exemplos de boa prática e ideias para o tratamento de pontos específicos da matéria, e podem obter, a partir do mundo do trabalho, excelentes casos de estudo para exploração na sala de aula. Podem, ainda, encontrar na rede uma larga gama de contactos, projectos, parceiros, endereços, recursos, demonstrações-piloto, pontos de acesso a bases de dados, e, bem entendido, podem explorar de forma inesgotável a dimensão internacional. Podem, finalmente, manter importantes debates em torno da actividade de desenvolvimento curricular que há pouco mencionei. O lançamento de um grande projecto mobilizador neste domínio pode ser explorado nacionalmente no seio da rede, que suportará o debate, a troca e disseminação de materiais, e muitas das actividades de acção/investigação indispensáveis a um projecto desta natureza.

Para além dos professores e dos alunos, também as próprias escolas terão muito a ganhar com a sua ligação às redes de dados. Cada escola poderá criar o seu ambiente virtual próprio (as "páginas", em gíria WWW), e torná-lo acessível tanto interna como externamente. No seio deste ambiente virtual, os professores e alunos podem criar os seus ambientes virtuais privados (ou "páginas"), onde podem partilhar com outros os seus interesses intelectuais e as suas afeições. Os espaços públicos de todos estes ambientes podem ser "visitados" por alunos (actuais, antigos e futuros), professores, pais, empresas, meios de comunicação, e a comunidade em geral, reforçando assim a integração da escola na comunidade circundante.

Quanto ao software educativo, penso, como disse há pouco, que o seu grande futuro será no mercado de grande consumo.

"Irá Portugal ter de se adaptar ao mesmo ritmo que outros países, como por exemplo os E.U. e a Austrália, sob risco de perder o combóio?"

Sem dúvida que tem, mesmo que necessite de usar a imaginação onde as disponibilidades financeiras falharem. A globalização das economias e a mobilidade (física e virtual) dos cidadãos tornam indispensável essa adaptação. O "combóio" é, aliás, muito mais importante do que a nossa eterna tendência de pensar para dentro poderia sugerir. Se nos dispusermos a reconhecer a importância da língua e da cultura como veículos de promoção extra-fronteiras da nossa economia, rapidamente compreenderemos a urgência de manter uma presença activa nas redes electrónicas internacionais. Repare que não me refiro apenas aos países de língua oficial portuguesa. Sabia, por exemplo, que o Português é ensinado oficialmente na Argentina como segunda língua?

"O que é que está a ser feito (e/ou foi feito no decorrer do programa Minerva) para adaptar a "nossa" às exigências desta renovação tecnológica que hoje se verifica?"

O projecto Minerva foi concebido tomando em consideração a realidade social, económica e tecnológica que existia na altura do seu lançamento, bem como as forças e fraquezas dos seus congéneres dos países mais desenvolvidos. Quando foi lançado assumiu uma estratégia e uma dinâmica que o colocaram, em alguns aspectos, à frente dos seus congéneres mundiais. Mesmo hoje, volvidos 10 anos sobre o seu lançamento, a estratégia Minerva continua a ser citada como exemplar por organismos tão insuspeitos como a OCDE. Ainda há poucos meses, um reputado especialista internacional de educação, que esteve em Portugal a estudar minuciosamente os traços deixados pelo projecto Minerva, escrevia numa revista americana que a estratégia Minerva devia ser seguida como modelo ... nos Estados Unidos1!! De facto, nunca, em tão pouco tempo, se tinha conseguido cobrir um país com uma rede solidária de instituições de ensino superior, associadas às escolas secundárias e primárias que as circundavam, irmanadas numa missão colectiva defendida de forma tão coesa, generosa e empenhada como aconteceu com o projecto Minerva. Repare que não falo com "pai" vaidoso e indulgente, nem reivindico nenhuns méritos pessoais! O projecto foi uma aventura colectiva, construida com uma vontade, uma criatividade, uma inteligência e uma dinâmica colectivas. O impulso chave resultou de ter sido possível estabelecer gradualmente uma missão - feita de contextos e vivências partilhadas, mais do que de leis e regulamentos - e uma motivação, estimulada pelo entusiasmo em torno das novas tecnologias e alicerçada numa grande vontade de mudança. Depois, houve que confiar na iniciativa, responsabilidade e solidariedade de todos os actores do processo, tal como hoje é defendido pelos peritos da gestão estratégica, quando falam de "empowerment". Embora os contextos actuais sejam completamente diferentes, o que obrigaria a tácticas diferentes, penso que a linha estratégica a usar hoje seria muito semelhante. A diferença fundamental seria que a "visão" mobilizadora se centraria, como sugeri há pouco, não nas tecnologias (como aconteceu no projecto Minerva), mas sim num processo permanente de desenvolvimento curricular, amplamente debatido e colectivamente interiorizado.

Coimbra, 5 de Novembro, 1995

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1 Stephen C. Ehrmann, "A Partnership Supporting Computers in the Schools: Lessons from Portugal", On Common Ground, Yale-New Haven Teachers Institute, No. 4, Spring 1995. O artigo termina assim: "In these days when any initiative seems too expensive to a government agency, a university, or a school, let Portugal stand as a symbol of what our poor country (U.S.A.) might yet accomplish" ["Nestes tempos em que qualquer iniciativa parece demasiado dispendiosa para um organismo governamental, uma universidade, ou uma escola, deixemos Portugal destacar-se como um símbolo do que o nosso pobre país (os E.U.) poderá ainda fazer"].


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