A Escola do Futuro

Por A. Dias de Figueiredo
Departamento de Engenharia Informática
Universidade de Coimbra
Resposta, enviada por correio electrónico, a perguntas do jornalista Pedro Fonseca. Parcialmente reproduzida no "Expresso XXI" Nº 1249, de 5 de Outubro de 1996).

"Qual é o estado actual do "Livro Branco sobre a Educação e Formação" e qual o impacto do seu texto no âmbito desse trabalho?

O Livro Branco foi publicado pela Comissão Europeia em fins de 1995. A versão, em livro, que possuo é a francesa, intitulada "Livre Blanc sur l’Éducation et la Formation : Enseigner et Apprendre - Vers la Société Cognitive" (Luxembourg: Office des publications officielles des Communautés européennes, ISBN 92-827-5699-8, 107 p., 1995).

Penso que não me ficaria bem comentar o impacto do meu texto, mesmo que conseguisse identificá-lo. Vários peritos europeus foram convidados a contribuir com textos que exprimissem a sua visão sobre a educação e a formação para o século XXI. O Livro Branco foi produzido tomando esses textos como inspiração, mas trabalhou profundamente as propostas recebidas para que fossem enquadradas nas políticas globais da Comissão, passadas e futuras. Como não li os textos dos outros autores, não posso garantir que as propostas em que me reconheço foram inspiradas pelo meu texto. Em qualquer dos casos, o primeiro parágrafo dos grandes objectivos gerais, consagrado ao "reconhecimento das competências" está em sintonia com as minhas ideias sobre os desafios da acreditação. A ideia base, tal como aparece no Livro Branco, é a de, "através da cooperação de todos os actores europeus interessados: primeiro, identificar um certo número de saberes bem definidos, gerais ou mais profissionais (matemática, informática, línguas, contabilidade, finanças, gestão, etc.); segundo, conceber sistemas de validação para cada um desses saberes; terceiro, oferecer novos meios, mais flexíveis, de reconhecimento de competências."

O texto prossegue observando que "um sistema destes poderia introduzir muito mais autonomia individual na construção de uma qualificação", e recomenda a criação de "cartões pessoais de competências" que permitam a cada indivíduo fazer reconhecer as suas competências e os seus saberes à medida que os for adquirindo. Propõe ainda que seja posto em prática "um modo europeu de acreditação de competências técnicas e profissionais", que descreve com algum pormenor.

(Devo adiantar que, na sequência desta proposta do Livro Branco, já está em curso um projecto europeu que se propõe efectuar automaticamente as acreditações pela resposta a questionários informatizados).

 "As linhas orientadoras do seu documento mantêm-se ou efectuaria agora algumas alterações ao que ali foi escrito em 1995?"

Quando o texto me foi pedido destinava-se a servir de base a um debate entre os diversos autores, do qual resultaria, então, o texto final. Não tive, por isso, qualquer preocupação em estruturá-lo em linhas orientadoras. Pretendi, pelo contrário, avançar com um conjunto de ideias polémicas que pudessem alimentar o debate. A estruturação resultaria, posteriormente, de um esforço colectivo, no decurso desse debate. Por razões que desconheço, o debate nunca viria a ter lugar, e os diversos textos foram entregues a uma comissão que os leu, e elaborou de raíz o texto final.

Se o texto me fosse pedido agora, e soubesse que não se destinava a debate, ter-lhe-ia dado uma coerência própria, assente sobre conceitos estruturantes, como os de "estratégia", "qualidade" e "liderança". Nesse contexto surgiriam necessariamente outras vertentes, menos polémicas do que as que avancei, mas que dariam maior coerência ao conjunto. As linhas de reflexão mais polémicas, que sugeri no trabalho de 1995, não sofreriam, no entanto, qualquer alteração.

"Quando fala das "learning societies", está a referir-se a sociedades do saber, do conhecimento ou da aprendizagem?"

Estou a referir-me àquilo que costumo designar por "sociedades aprendentes": um tipo de sociedade, que descrevi num texto de 1990, na qual a informação se encontra, não só em repositórios de informação acessíveis às massas, mas também na mente colectiva dos cidadãos, tornados capazes de a trocar e recombinar para construirem, individual e colectivamente, novos saberes. São sociedades em que, para além do recurso às escolas e à crescente oferta das indústrias intelectuais, é possível a criação de saber, através de redes, num processo cumulativo de ajuda mútua e percepção partilhada de problemas e necessidades. A Internet começa a oferecer os meios para a generalização de sociedades desta natureza. Entretanto, se pensarmos bem, estas sociedades não são mais, afinal, do que uma extrapolação para sociedades inteiras do conceito de "learning organization" de que fala Peter Senge na sua "Quinta Disciplina". A extrapolação passou a ser possível com a generalização do acesso à Internet por parte dos cidadãos.

"Se o estudo escolar será uma cada vez menor parte da aprendizagem global que as crianças vão ter - e isto num momento em que os responsáveis pela educação doméstica das crianças passam pouco tempo com elas -, qual deverá ser o papel da escola?"

Quando digo que "o estudo escolar será uma parcela cada vez menor da aprendizagem global que as crianças vão ter" não quero dizer que vão aprender menos na escola, mas sim que irão aprender cada vez mais no exterior. Na escola, penso que devem é aprender melhor. O papel da escola deverá ser, a meu ver, o de promover a aquisição de saberes e competências chave e de auxiliar a estruturar a grande diversidade de vivências exteriores em torno desses saberes e competências chave. A título de exemplo, cabe referir a necessidade imperiosa de adquirirem competências laboratoriais - o que, como os jornais noticiam, é motivo de compreensível preocupação por parte do Ministério da Ciência e da Tecnologia. A escola deverá tornar-se, além disso, como insisto no meu documento, num espaço privilegiado para a criação de compensações ao nível dos valores humanos e da afectividade. Resumindo (e parafraseando algo que disse à Forum Estudante): A função chave da escola reinventada é a de dar estrutura a um mundo de diversidade, fornecer os contextos e saberes para uma autonomia de sucesso nesse mundo, e fornecer as respostas humanas compensatórias de que a escola dos nossos dias se está a distanciar tão perigosamente.

"Um dos problemas com que os professores já estão a lidar e que se deverá acentuar é a possibilidade que alguns alunos têm de aceder a diferentes suportes de informação - que podem não estar disponíveis para os professores. Assim, como é que o professor pode contextualizar e enquadrar esse conhecimento do aluno no decurso da sua carreira escolar pessoal e de preparação para a vida profissional?"

Trata-se da alteração profunda do papel do professor, que tanta tinta tem feito correr nos últimos dez anos. O professor como autoridade suprema, que sabe tudo, incumbido de ensinar o aluno, que nada sabe, é cada vez mais um modelo do passado. O papel que defendo para o professor assemelha-se ao do mestre no modelo medieval do mestre e do aprendiz. Na versão moderna desse modelo, o professor usa a sua competência científica e pedagógica e a sua experiência para criar contextos de aprendizagem tão fecundos quanto possível. Identifica dificuldades de aprendizagem, procura superá-las (criando, eventualmente, novos contextos) e procura estruturar as vivências do aluno num corpo de saber que se torne estruturante e operacional. Como é evidente, o processo de aprendizagem torna-se frequentemente bilateral, e aquilo que o professor, e a turma, aprendem com os alunos individuais só vem reforçar a coesão e riqueza do processo. A componente afectiva de tudo isto é, evidentemente, crucial: todos sabemos que os alunos tem dificuldade em aprender, por muito que se esforcem, as disciplinas ministradas por professores que lhes inspiram desagrado, e que, pelo contrário, são capazes de se entregar de alma e coração às disciplinas, eventualmente mais difíceis, dos professores com quem criam empatias. O efeito de Pigmaleão, tão desatradamente ignorado no nosso ensino, é mais uma vertente deste aspecto.

"O que deverá ser feito para levar para as escolas a "componente humana e o seu papel como veículo da cultura", quando se nota uma baixa qualitativa nos professores em geral? Ou isto não é verdade?

Não estou convencido de que haja uma baixa notória da qualidade dos professores. O que acho é que, no ambiente de mudança em que se integra, a escola está a atingir o limite da sua capacidade para se comportar como repartição estatal de fornecimento burocrático de ensino. A falta de qualidade não resulta, a meu ver, de os professores não a terem, mas sim de não se sentirem estimulados a exercê-la. O que falta, na escola, é um processo mobilizador genuino, animado por uma liderança que imprima direcção, promova a mudança, e instile uma cultura e uma ética. No meu documento proponho que o indispensável processo mobilizador seja lançado em torno da temática agregadora do desenvolvimento curricular.

"Nesse sentido, o que acontecerá às crianças que estudam em casa e comunicam à distância com os professores (um milhão de casos nos EUA?!?)? Considera que este tipo de ensino é eficaz?"

Poderá ser eficaz, mas será incompleto se não fôr complementado com formas de interacção presencial. Estamos ainda nos primórdios de uma antropologia do ciberespaço, mas as insuficiências de uma apropriação social sem a dimensão da linguagem dos sentidos estão já mais do que provadas. Penso que essas crianças terão que ter outras experências de convivência, não necessariamente proporcionadas pela escola formal, mas que os exponham de forma controloada à grande variedade de vivências presenciais de que é feita a vida diária, incluindo as que envolvem conflitos e a resolução desses mesmos conflitos.

"E como se pode falar em escola mais humana quando parece crescer a violência dentro dos perímetros escolares - que, compreendo, pode apenas traduzir o que parece acontecer fora dos muros da escola?"

Penso que o acréscimo de violência justifica, precisamente, a necessidade de uma escola mais humana. Não penso que haja tempo para me alongar sobre os complexos fenómenos da agressividade na sociedade actual, mas bastará recordar que a agressividade resulta, muitas vezes, de frustrações, para se poder compreender que uma sublimação dessas frustrações, conduzida num ambiente mais humano, pode contribuir para a redução da violência, dentro dos perímetros escolares, e fora deles.

"Quando da criação do "certificator" (certificador? diplomador?), quem o irá avaliar a ele e conferir-lhe esse grau?

Temos, hoje em dia, nas nossas escolas, milhares e milhares de examinadores cuja autoridade não é contestada. Curiosamente, quase todos foram preparados para ensinar, e não para avaliar. Por isso os enunciados dos exames se transformam muitas vezes em charadas sádicas, que nada têm que ver com um esforço genuino para apurar o que é que cada aluno sabe e que competências desenvolveu para tornar esse saber operacional.

Os certificadores, ou diplomadores, seriam profissionais da avaliação. Para além de formação científica ou técnica sólida nos domínios em que fossem chamados a avaliar, e na própria aplicação dos saberes desses domínios, teriam uma preparação adequada de psicologia dos processos de avaliação. Note-se que, para alguns domínios específicos, o conceito de certificador não traz nada de novo. Apenas a generalização do conceito a todos os domínios, no sentido de criar, para cada cidadão, um atestado, actualizável, de TODAS as suas competências, é original. Também é original a sugestão de que esses atestados possam constituir uma alternativa válida a um curso universitário, ou técnico, formal, e que isso possa obviar à marginalização de muitos jovens dotados de valiosos leques de competências que, contudo, não passam pela obtenção de cursos.

No que se refere aos aspectos parcelares deste modelo, todos sabemos que qualquer pessoa pode, hoje em dia, sujeitar-se a um teste da sua competência na língua inglesa, sem que lhe perguntem se aprendeu na escola ou aprendeu sozinha; e em muitos países, incluindo o Reino Unido, é possível obter carta de automóvel sem apresentar qualquer prova de ter seguido lições formais.

"Se o número de computadores por aluno ou escola não é um medidor eficaz, pela obsolescência verificada, quais são as alternativas?"

Existe hoje em dia um amplo corpo de doutrina sobre processos de gestão da qualidade, que incluem a avaliação de resultados. Estes princípios podem ser aplicados com rigôr aos processos educativos, quer envolvam tecnologias auxiliares, quer não, e a sua utilização crescente em outros países tem vindo a confirmar a sua adequação.

 "Saindo do âmbito do documento, qual a sua opinião sobre a iniciativa de colocar computadores multimedia com ligação à Internet nas escolas?"

Penso que essa iniciativa vem inteiramente ao encontro de recomendações que faço no documento, no fim do parágrafo "Reinventar um novo papel para a escola" e em todo o parágrafo "O desafio das comunidades virtuais". No primeiro, digo que a escola necessita de "possuír tecnologia permanentemente actualizada e acesso às redes ao nível dos seus centros de recursos". No segundo, refiro os principais benefícos dessa ligação, para os alunos, para os professores, para a própria escola, e para a comunidade em geral.

Seria, ainda, interessante se o processo fosse replicado em bibliotecas públicas, e se pudessemos passar a ver os filhos a deslocarem-se às escolas e às bibliotecas públicas na companhia dos pais, para lhes mostrarem as suas descobertas, e para partilharem com eles algumas das suas aventuras ciberespaciais.

Como se pode, hoje, medir o impacto do programa Minerva? Houve estudos de acompanhamento dos alunos abrangidos pelo programa por forma a detectar se ele influiu na sua vida futura?

No âmbito do projecto Minerva publicaram-se centenas de estudos, em conferências e revistas nacionais e estrangeiras e em teses de mestrado e doutoramento. Não sei se houve algum estudo com o objectivo específico de detectar influências na vida futura dos alunos abrangidos. Mas em volume de publicações científicas e pedagógicas produzidas, o Minerva constitúi um caso ímpar na história da educação em Portugal. Penso que isso fornece já uma medida do seu impacto. O projecto foi, além disso, avaliado por uma equipa de especialistas da OCDE, que lhe teceu rasgados elogios. Ainda há pouco tempo, volvidos mais de dez anos sobre o seu lançamento, um reputado especialista internacional de educação, que esteve em Portugal a estudar os traços deixados pelo projecto, escrevia numa revista americana de educação que a estratégia do projecto Minerva deveria passar a ser seguida ... nos Estados Unidos!!! (Stephen C. Ehrmann, "A Partnership Supporting Computers in Schools: Lessons from Portugal", On Common Ground, Yale-New Haven Teachers Institute, pp. 16-17, No. 4, Spring 1995). De facto, nunca, em tão pouco tempo, se tinha conseguido cobrir um país com uma teia solidária de instituições de ensino superior, associadas às escolas secundárias e primárias que as circundavam, irmanadas numa missão colectiva defendida de forma tão coesa, generosa e empenhada como aconteceu no projecto Minerva. Repare que não estou a reivindicar nenhum mérito pessoal: o projecto foi uma aventura colectiva, construida com uma vontade, uma criatividade, uma inteligência e uma dinâmica colectivas. O que penso, é que esta mesma característica realça um outro impacto do Minerva, que se reveste de importância chave para o momento presente, em Portugal: o de ter provado que é possível estabelecer gradualmente uma missão e uma motivação - feitas de contextos e vivências partilhadas, mais do que de leis e regulamentos - e que é possível fazê-las frutificar confiando na iniciativa, reponsabilidade e solidariedade de todos os actores do processo.

A teoria das organizações diz-nos que as organizações mecanicistas (ou burocráticas) são incapazes de se adaptar a ambientes de mudança. Ora as escolas do presente são exemplos acabados de organizações mecanicistas, onde as motivações dos actores são relegadas para o nível mais baixo da hierarquia de Maslow (salários, reduções de serviço). O projecto Minerva correspondia, pelo contrário, a um modelo orgânico de organização (significativamente influenciado por concepções de estratégia organizacional que começavam a surgir na altura, em obras como "The Structuring of Organizations", de Henry Minzberg, e "In Search of Excellence", de Tom Peters e Robert Waterman). As preocupações com a geração de motivações cobriam as camadas superiores da hierarquia de Maslow - satisfação pessoal, prazer de participar, capacidade de iniciativa, gosto de actualização - e provaram que é possível, em Portugal, ter centenas e centenas de professores genuinamente empenhados em participar, mesmo com grandes sacrifícios pessoais, num processo em cujo sucesso acreditavam. Isto tem que ver, como é evidente, com a necessidade do processo mobilizador a que me referia há pouco.